Bhūmī-devī – A Mãe Terra

O momento é mais do que oportuno para falar sobre a Devī. Hoje, dia 14 de Outubro, após as 14.22h, começa o daśamī tithiḥ, o décimo dia lunar, e portanto celebra-se o Vijaya Daśamī, o décimo dia. Este é um dia novos começos, um dia de celebração da vitória do bem sobre o mal, da vitória do dharma sobre o adharma. Assim sendo, fica aqui o meu profundo desejo: que o dharma possa sempre prevalecer nas nossas vidas, sendo o principal fator decisivo nas nossas escolhas e tomadas de decisão.


Porém, o tema do artigo de hoje não é o Navarātrī, mas sim a Mãe Terra, ou se quisermos a Mãe Universal. Primeiramente, antes de falar sobre Mãe Terra, falarei sucintamente sobre a mãe individual, mãe de cada um de nós, a sua mãe. Se está a ler estas palavras, foi pela graça da sua mãe, e do seu pai, claro, como é óbvio. Na Taittirīya Upaniṣad, na primeira Vallī, intitulada Śīkṣāvallī, na anuvāka nº20, deparamo-nos com um mantra muito importante:

मातृदेवो भव । पितृदेवो भव । आचार्यदेवो भव । अतिथिदेवो भव।
mātṛdevo bhava | pitṛdevo bhava | ācāryadevo bhava | atithidevo bhava|
Possa ser aquele para quem a Mãe é Īśvara. Possas ser aquele para quem o Pai é Īśvara. Possas ser aquele para quem o Professore é Īśvara. Possas ser aquele para quem o convidado é Īśvara.

Este mantra ocorre num contexto muito importante, cuja relevância é também importante para a vida de qualquer ser humano. Qual é o contexto? O contexto é o seguinte: o professor, tendo concluído o ensinamento do Veda aos seus discípulos, que o memorizaram na íntegra, liberta-os da aprendizagem, abençoando-os para que possam constituir família e seguir crescendo emocionalmente e espiritualmente.

Neste contexto, ele dá alguns conselhos importantes para a vida aos seus discípulos. Um deles, relevante para nós neste momento, é “mātṛdevo bhava”; bhava, que possas ser, que possas tornar-te, mātṛdevaḥ, aquele para quem a Mãe é Deva, uma deidade, ou Īśvara. A Upaniṣad quer revelar que a mãe ocupa um lugar especial, equivalente a uma deidade, equivalente a Īśvara.


De facto, quando a mãe trás no ventre por nove meses um filho – e cada um de nós é filho ou filha – a mãe é um instrumento completo do Criador ou da Criação, como quiser chamar-lhe. O Universo inteiro opera milagrosamente através da Mãe e uma criança nasce, tendo sito nutrida e magnificamente protegida por cerca de nove meses pela mãe, numa casa incrivelmente desenhada pelo melhor arquiteto, Īśvara, o Arquiteto Universal.

Depois, tendo nascido, o bebé recebe o leite materno e todos os cuidados mais do que necessários para o seu crescimento e desenvolvimento adequados. Sem a mãe ou alguém que ocupe esse lugar, um bebé simplesmente não sobrevive. Assim sendo, tendo em conta estes factos, possa o leitor lembrar que se consegue ler estas palavras, isso deve-se à presença e à contribuição muito significativa da Mãe, seja ela biológica, ou não. Então, lembrando quem nos fez bem, e lembrando todo o bem que nos fez, o sentimento resultante num coração saudável é de amor e gratidão acompanhado de um profundo respeito.


No seguimento do que acabou de ler, partilho aqui consigo, um verso juntamente com a sua tradução e comentário, que ocorrem no meu primeiro livro intitulado “Preces Matinais Antigas de Índia” e que, para mim, foi e continua a ser muito significativo, revelador e digno de contemplação –

समुद्रवसने देवि पर्वतस्तनमण्डले ।
विष्णुपत्नि नमस्तुभ्यं पादस्पर्शं क्षमस्व मे ॥
samudravasane devi parvatastanamaṇḍale ।
viṣṇupatni namastubhyaṁ pādasparśaṁ kṣamasva me ॥

Significado das palavras:
samudra-vasane devi – ó deidade, deusa, a que tem os oceanos como vestes; parvata-stana-maṇḍale – cujos seios redondos são as montanhas; viṣṇupatni – a consorte de Viṣṇu; namaḥ – saudação, reverência; tubhyaṁ – para si; pāda-sparśaṁ – tocar com os pés; kṣamasva – perdoe; me – a mim.

Tradução:
Ó Deusa! (Você é) a consorte de Viṣṇu, os oceanos são as suas vestes e as montanhas são os seus seios redondos. (A minha) saudação para si e perdoe-me por tocar (com os pés em si).

“No Vaidika Saṁpradāya, Tradição Védica de Ensino, o planeta Terra é visto como Bhūmi-devī, a deidade Bhūmī, Mãe Terra, que é quem nos sustenta. Ela é o solo onde crescem as árvores que nos fornecem alimento, oxigénio e sombra, é o solo onde os oceanos encontram o seu repouso, é as montanhas em cujas encostas íngremes correm incontáveis rios que nutrem cidades, vilas e aldeias, é o chão que segura as nossas casas e que os nossos pés pisam. A Mãe Terra é simbolicamente a mãe de todos os seres vivos, pois todos eles nascem da terra, pela terra são sustentados e à terra retornam quando a vida termina.


É importante e necessário saber que na cultura Indiana os pés são considerados impuros pois estão sujeitos a muita sujidade especialmente quando se caminha descalço ou de chinelos. Por isso, na Índia e noutros países, o calçado geralmente fica à entrada das habitações e as pessoas lavam os pés assim que chegam a casa. Desta forma evitam trazer para dentro de casa a sujidade das ruas. Nos templos hindus, por exemplo, para além de apenas se poder entrar descalço, existe geralmente à entrada uma torneira específica para lavar os pés e para salpicar o corpo com água, que é um pequeno ritual ou gesto de purificação que a maior parte das pessoas segue.

Ainda há algo muito interessante a dizer sobre os pés. Na Índia, quando alguém acidentalmente toca com o pé noutra pessoa, a pessoa que acidentalmente tocou com o pé deverá tocar com a sua mão direita na pessoa tocada pelo seu pé. Este gesto é um pedido de desculpa. Depois de pedir desculpa, a pessoa toca com a sua mão direita nos seus olhos. O mesmo se aplica se chutarmos acidentalmente dinheiro, livros, instrumentos de música, ou objetos relacionados com o ensino. O gesto de tocar com as mãos nos olhos é uma forma de comunicar que o objeto em que toquei acidentalmente com o pé é sagrado, tal como os meus próprios olhos são, graças aos quais posso ver o mundo e apreciar a sua beleza e singularidade.


Os pés também são vistos como um altar onde reverência, gratidão e humildade são oferecidas através duma prostração diante deles. Quando um sādhu, uma pessoa santa, o mestre, os pais ou avós, uma pessoa mais velha, ou outra pessoa importante nas nossas vidas chega, é costume expressar a reverência, o amor, a gratidão e a humildade que sentimos, através de nos prostrarmos e tocarmos nos pés deles com as nossas mãos. A pessoa que recebeu a prostração, em retorno, poderá colocar a sua palma da mão direita na nossa cabeça, que é um sinal das suas bênçãos. Portanto, embora os pés sejam considerados impuros na cultura indiana, eles são também o altar onde oferecemos a reverência, a gratidão e o amor que sentimos pelas pessoas que são significantes e importantes para nós.

Gostaria ainda de acrescentar algo importante. Na Índia esticar as pernas deixando as plantas dos pés voltadas para o professor ou para alguém que esteja a palestrar, é falta de educação e falta de consideração. Por isso é costume as pessoas sentarem-se com as pernas cruzadas tapando os pés.


Tendo abordado os pés no contexto cultural indiano, estamos preparados para entender o significado desta prece. Quando nos levantamos da cama a primeira parte do corpo a tocar o chão são os pés. Como a Terra é a Deusa Mãe é apropriado pedirmos desculpa porque iremos pisá-la ao ter que sair da cama. Sendo simbolicamente seus filhos, nós deveríamos tocar nos pés da Mãe Terra para receber suas bênçãos evitando voltar nossos pés na sua direção. Uma vez que isso é impossível porque inevitavelmente tocaremos no chão, o pedido de desculpa é mais que apropriado.


Com esta prece estabelecemos uma ligação e comunhão com o planeta, que nos enche o coração de amor e gratidão. Este pedido de desculpa é na verdade o reconhecimento da importância que Bhūmī, a Mãe Terra, tem. Existe um ditado que diz: “uma mãe é para cem filhos, mas cem filhos não são para uma mãe”. A mãe tem amor protetor, um amor que sempre dá e que sempre cuida. A mãe está sempre disposta a ajudar os seus filhos pois essa é a natureza de ser mãe. Por outro lado, nenhum filho sobrevive sem uma mãe, ou sem alguém que ocupe esse papel, porque todos os seres humanos vêm ao mundo totalmente indefesos e sem qualquer capacidade de olharem por si próprios.

Um recém-nascido tem uma capacidade peculiar, é dotado da capacidade de confiar totalmente na mãe ou em quem cuida dele. A natureza é incrivelmente prática pois nascer totalmente indefeso e totalmente incapaz de cuidar de si próprio vem acompanhado da capacidade de confiar totalmente. Só assim o recém-nascido consegue sobreviver, confiando totalmente. A mãe, pelo contrário, para além de cuidar dela, ainda cuida dos filhos. Ou seja, uma mãe consegue cuidar de cem bebés mas cem bebés não conseguem cuidar de uma mãe. Por estas e outras razões a mãe é muito importante. Se a mãe biológica é muito importante, o que dizer da Mãe Terra que nutre e suporta todos nós? Bhūmī, a Mãe Terra, é a Mãe de todos os seres vivos, por isso, antes de a pisar, eu peço desculpa.”

Paulo Abreu Vieira,
11/10/2021

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