Ahiṁsā – Não-violência

Vivemos num mundo extremamente complexo no qual são incontáveis as variáveis que determinam a nossa condição futura. Este mundo foi-nos dado, estamos todos nele e não há como evitá-lo. Já os nossos pais estavam nele, bem como os nossos avós e todos os antepassados, graças a quem o leitor está, neste preciso e especial momento, a ler estas palavras.


Não é que o mundo se tenha tornado complexo nesta geração, pois ele já assim o era. O mundo sempre foi complexo e isso não mudará. Esta complexidade do mundo, da vida, dos relacionamentos e das próprias questões fundamentais da existência humana, desorienta as pessoas, assustando-as e deixando-as confusas relativamente ao rumo a tomar neste oceano de infindáveis oportunidades chamado vida.

Para além da confusão natural, que, aliás, é tremendamente sentida na adolescência, fase em que a individualidade de cada um se sobrepõe à vontade parental naturalmente instituída desde o nascimento, muitos de nós, infelizmente, não tiveram modelos parentais ideais que poderiam eventualmente ter sido um fator de diminuição dessa confusão ou desorientação inerente à vida. Quando assim é, portanto, quando uma criança é educada por pais incapazes de educar, estando eles mesmos confusos sobre a vida, essa criança pode transformar-se num adolescente problemático para ele mesmo e para a sociedade.

Quero dizer e tornar claro que acredito que qualquer pai ou mãe quer dar o seu melhor e que faz tudo o que está ao seu alcance para ser um bom educador. Contudo, há uma diferença entre querer ser um bom educador e ser, de facto, um bom educador. Para se ser um bom educador não basta querer, é necessário também aprender a sê-lo. Para além disso, é necessário ainda consumar a educação, educando de facto, educando realmente, e também levar uma vida que sirva de exemplo, na qual as ações do educador são a luz orientadora para quem vem a trás.


O futuro da humanidade são as crianças. Elas são puro potencial criativo que um dia se manifestará. Se queremos bons pais, bons educadores, então, necessariamente, teremos que educar bem as nossas crianças, para que elas se tornem também em bons educadores e bons pais.

A pergunta agora é: como é que se educa bem uma criança?


A resposta não é linear nem simples. De facto, nós, humanidade, ainda estamos a descobrir como educar bem as nossas crianças. O mundo muda, evolui, trás situações que não existiam no passado e coloca-nos constantemente em posições novas e desafiantes. Há 100 anos atrás a discussão sobre as mudanças climáticas não era assunto de interesse público, contudo, hoje é! Há 30 anos atrás não se falava dos perigos inerentes à internet e às redes sociais. Porém, hoje em dia todos estamos preocupados com isso. Com a mudança veloz das estruturas do mundo, os modelos educacionais das nossas crianças ficam rapidamente ultrapassados porque a nossa sociedade é tecnológica, é de informação, e cavalga quase tão rápido como o próprio tempo, tornando esses modelos forçosamente obsoletos.

Apesar dos modelos educativos poderem e serem de facto ultrapassados, jamais será ultrapassada a necessidade que as nossas crianças têm de aprenderem os vários valores éticos e morais. Reparem que a sociedade poderá mudar, e mudará, de facto, contudo, jamais mudará que todos queremos viver em paz e felizes, que todos queremos um mundo mais pacífico e com oportunidades de realização para todos. Se queremos um mundo pacífico, então temos todos forçosamente que aprender a sermos pacíficos. Não há outra via para a paz a longo prazo do que valorizar a paz e praticá-la.


Os Yogis sábios da antiguidade sabiam que os valores éticos e morais são a estrutura que sustenta a paz entre os humanos. Algures, no grande épico Mahābhārata, ocorre a popular frase “ahiṁsā paramaḥ dharmaḥ” – a não-violência é a maior virtude, é o maior valor. Os Yogasūtras, no sūtra 2.30, também mencionam este valor como um dos yamas, disciplinas comportamentais nas quais nos abstemos de algo. Para a pessoa que estude Vedānta o valor da pacificidade também é conhecido e denotado pelos Mestres como sendo de suma importância. Então, este é, sem dúvida alguma, um valor a ser ensinado a todas as crianças do mundo.

Mas o que é ahiṁsā, não-violência ou pacificidade?

A definição em sânscrito é a seguinte –

वाङ्मनःकायैः सर्वभूतानां पीडाभावः अहिंसा ॥
vāṅmanaḥkāyaiḥ sarvabhūtānāṁ pīḍābhāvaḥ ahiṃsā ||
A não-violência é a ausência de violência para com todos os seres vivos, ao nível da voz, da mente e do corpo.

Este valor tem que ser valorizado através da compreensão consensual e comum de que ninguém gosta de ser objeto de uma ação violenta, seja ela mental, oral ou física. Quero dizer com isto que é do senso comum o seguinte: “se não gosto que me façam mal, que me violentem, então não farei mal aos demais, não violentarei os demais, pois também, certamente, eles não gostarão”. A reflexão nesta ideia deverá ser encorajada a todas as crianças, e deverá ser acompanhada da lembrança das emoções sentidas quando a criança se sentiu violentada. O valor da paz só poderá ser verdadeiramente valorizado quando se torna um valor para o próprio, portanto, quando o próprio o valoriza.

O mecanismo é ironicamente eficaz, pois tendemos a valorizar a paz somente quando a perdemos. Então, há que trazer à memória a perda dessa paz juntamente com as emoções consequentes. Depois, há que fazer ver a essa criança que todos queremos paz, que não é somente ela que quer paz e que, se todos formos mais pacíficos, todos teremos mais paz. A criança terá que entender que se cada um contribuir com a sua parte da paz, a paz cresce para todos. A contribuição individual resulta num benefício coletivo bem como individual.


Não é à toa que a tradição Védica nos ensina que o valor da pacificidade é o mais exaltado. A razão para isso fica clara quando se entende que a paz é o tecido onde reside a harmonia individual, familiar, social e mundial. Sem paz individual não há paz familiar. Sem paz familiar não há paz social. Sem paz social não há paz mundial.
A não-violência tem duas direções, a primeira é interna, a segunda é externa. A não-violência interna é a prática da pacificidade com o complexo corpo-energia-mente. A não-violência externa é a prática da pacificidade com o mundo externo, em todas as formas no qual está manifesto.


Na primeira, interna, a pessoa deverá aprender a aceitar inteligentemente, objetivamente e pacificamente as suas próprias limitações, entendendo que ultrapassar os limites do seu complexo corpo-energia-mente é um ato violento. Ir além dos limites razoáveis que cada um tem põe em risco a saúde física, a saúde energética e mental. Então, quando se pensa em não-violência, deverá ser incluída a componente fundamental da relação consigo mesmo. A relação consigo mesmo deve ser não-violenta. O resultado a médio-longo prazo de se relacionar não-violentamente consigo mesmo é chamado maturidade emocional, algo tremendamente desejável para todos os seres humanos. Quanto mais cedo na vida a pessoa se torna madura emocionalmente, menos se violenta a si mesma e naturalmente menos violentará os demais. Isso é muito desejável tanto a nível individual quanto coletivo.

Na expressão externa da não-violência criamos um ambiente onde a segurança individual aumenta, porque os demais não se sentem ameaçados com a nossa conduta. Com isso vemos pessoas mais relaxadas, calmas e com níveis de stress baixos. Num lugar onde o índice de violência, seja ela mental, verbal ou física, é baixo, as pessoas naturalmente se sentem mais conectadas, livres e à vontade para serem quem são, expressando os seus talentos e virtudes sem medo de represálias ou ameaças. Por outro lado, vemos que um ser humano inserido num ambiente continuamente hostil desenvolve traumas, medos, ansiedades e cria, consequentemente, um comportamento reativo-defensivo como resposta.

Ele deixa de poder expressar as suas virtudes em função da necessidade instintiva de se proteger, porque muita da sua energia é empregue na sua proteção. Para além disso, tendencialmente a violência é respondida com violência, o que gera mais violência. É como gasolina atirada para uma fogueira! O efeito é catastrófico.


Cada um sai muito beneficiado com apenas alguns minutos de contemplação reflexiva sobre o que é a pacificidade e quais as consequências positivas e desejáveis deste nobre valor que se transforma numa conduta de vida. A análise de como e quando se é violento abre a possibilidade ao vislumbre de como não o ser. Daí, cada um poderá implementar metas diárias para aperfeiçoar e implementar ahiṁsā nas suas vidas sem necessidade de recorrer a filosofias complicadas.


Para os que buscam espiritualmente, portanto para os que buscam deliberadamente a paz, que fique bem claro que somente pela paz a paz é alcançada. Pela prática da paz surge a estabilidade na prática da paz. Pela estabilidade continuada na conduta pacífica surge a descoberta da santidade, que é a natureza pura mental de cada um, que assume a forma de compaixão. Então, há a descoberta de algo muito profundo e bonito, sarvabhūtadayā, a compaixão dirigida a todos os seres, que não é mais do que o desejo de que todos os seres não sofram, de que todos os seres possam ter paz.

Tendo como valor no coração a conduta pacífica, a pessoa abstém-se da conduta violenta. Há que aprender a vigiar os pensamentos, aprender a filtrar as palavras e aprender a conter qualquer expressão ou impulso físico violento. Um Yogin é alguém íntegro, uma pessoa em quem o pensamento, a palavra e a ação estão alinhados. Alinhe-se pela paz. Amorosamente seja pacífico consigo mesmo e com os demais seres que partilham a vida aqui na Terra consigo.

Paulo Abreu Vieira
Novembro 2021

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