A Coragem de Olhar para Dentro

Geralmente quando se pensa em coragem associamo-la aos atletas de desportos de combate, de desportos radicais, ou a profissões de risco nas quais é grande e constante a convivência com a iminência da morte. Penso que tal associação está correta e é muito válida, porque, de facto, esses atletas e profissionais acima referidos têm muita coragem. Afinal de contas, enfrentar a própria morte ou a possibilidade elevada de uma lesão física que poderá limitar para sempre a vida é um sinal de grande coragem e é, definitivamente, louvável e memorável.

Contudo, agora gostaria de trazer a atenção do leitor para outro tipo de direcionamento dessa força interna chamada coragem. Falo-lhe da coragem para olhar para dentro e ver, muito honestamente, o que precisa de ser visto, sem rodeios, sem desculpas e sem negações.

Somos feitos de bom e de mau. Em cada um há um tanto de coisas boas a que poderemos chamar de virtudes e valores e há, também, inevitavelmente, outro tanto de coisas más – ou que conotamos como más – a que podemos chamar de defeitos ou desvirtudes. Nem tudo são rosas nos seres humanos.

Acontece que somos ou estamos treinados para mostrar o nosso bom e esconder o nosso mau, até porque essa é uma forma segura de sermos aceites e amados pelos outros, como é óbvio, facilmente entendível, necessário e muito desejável numa sociedade, pois, para que uma sociedade funcione bem, é necessário que todos nos possamos entender e respeitar, no mínimo, e, utopicamente, que nos possamos amar e acolher, mesmo perante as enormes divergências mútuas.

Será que o bom que mostramos é realmente o nosso genuíno bom? Ou será o bom que os outros querem ver e que é necessário mostrarmos para sermos aceites e amados? Ou seja, será que estamos a fazer de conta que somos bons, ou estamos mesmo a mostrar bondade genuína? A resposta a estas questões é difícil e cada um tem que olhar para dentro e descobrir. Para olhar para dentro é necessário muita coragem pois corremos o risco de ver coisas das quais não gostamos. Este é o risco de descobrir a verdade – pode ser dura de aguentar.

Falo-lhe do lado sombra que tende a ficar na penumbra, em silêncio, esquecido, adorando passar despercebido como se não existisse. E uma parte de nós sabe que ele existe, mas é conivente e negligente, ou mesmo covarde – é preferível não olhar para o que é feio, pois assim não se sente a dor da feiura. E todos temos muita feiura escondida para a qual nos recusamos a olhar.

O guerreiro interno recusa-se à covardia pois sabe muito bem que dela advém a estagnação ou a regressão do processo de maturidade e isso é insuportável para ele, que já descobriu a glória que lhe é destinada por direito. Por isso cavalga para essa glória, deseja esse triunfo sobre a sombra, sobre o seu lado de feiura.

Amor que é amor, ama o feio e o bonito, simplesmente por que ama, e quando esse amor ama, vê o feio como bonito. Tal é o poder do amor e a sua intrínseca incondicionalidade. Seguindo o mesmo trajeto de pensamento, o amor próprio é aquele que acolhe todas as dimensões psicológicas que coabitam internamente, sejam elas de carácter esteticamente belo ou não. Então, olhar para o lado sombrio da psique é amor próprio e é coragem também, pois é a certeza do encontro da feiura que jaze em cada um e do sentir das dores subsequentes desse triste mas glorioso encontro.

Não é fácil admitir a mentira entranhada na forma de ser e esculpida anos a fio pelo cinzel da ignorância e da vergonha. Não é fácil admitir a inveja do sucesso dos nossos irmãos e amigos, que desejam intimamente a mesma felicidade e realização que todos os outros.  Não é fácil admitir as raivas suprimidas por desejos de agradar e de aceitação, que tantas vezes nos separam daquilo que deveríamos ter sido. Não é fácil brilhar na presença daqueles que ainda não têm luz pois a antecipação da pena crucifica essa nossa luz. Não é fácil chorar as nossas fraquezas quando todos esperam a nossa força, porque eles mesmos são fracos. Não é fácil olhar para dentro, pois se o fizermos de forma honesta e corajosa iremos descobrir o quanto falta crescer.

Olhar para dentro é amor próprio e amar nunca foi fácil. Todavia, se amar é incondicional e acolher, então amor próprio é o acolhimento incondicional de tudo aquilo que somos, tanto de mau, quanto de bom.

Fevereiro 2023

Paulo Abreu Vieira

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