O Valor da Verdade
Nas aulas de Vedānta e também nas aulas de Yoga, encontrar-se-á, cedo ou tarde, a palavra satyam, que significa honestidade. A honestidade é um valor a ser seguido diligentemente por todos os buscadores da Verdade, pois ela é o meio e o fim. Como conseguirá um buscador descobrir a verdade última de todas as coisas levando uma vida de mentira e falsidade?! Não conseguirá!
Dito isto, dizem os grandes mestres da nossa tradição que a prática da honestidade, ou da verdade, como quiser chamar-lhe, é um meio indireto para o conhecimento da Verdade. Por outras palavras, é uma porta que se abre para poder seguir o caminho espiritual, o caminho da compreensão da realidade última de todas as coisas chamada Verdade. A verdade relativa, que é a que pomos em prática como um valor para seguir, é o meio indireto para alcançar a verdade absoluta, chamada em Sânscrito, também Satyam ou Sat, existência.
Assim como qualquer outro valor, como por exemplo, ahiṁsā, a não-violência, também satya, honestidade, contribui para o fortalecimento do carácter espiritual quando seguida com determinação e coragem pelo praticante. Sim, é preciso coragem para seguir o caminho da verdade, pois é necessário ser-se verdadeiro, o que, definitivamente, nos coloca em posições de muita vulnerabilidade, uma vez que ficamos expostos. Coragem será, então, neste contexto, a força e a determinação para se ser vulnerável perante a exposição e manter a honestidade em todas as nossas interações.
O caminho da verdade é aqui e agora que começa, aliás, já começou se está a ler estas palavras. Quando olha para si com honestidade, quando fala de si com honestidade, quando fala com os outros honestamente, está a seguir esse caminho nobre. Há que respirar honestidade para se ser honesto, assim como há que respirar ar para se estar vivo, porque a vida espiritual depende da respiração do ar da honestidade.
A mentira é como uma sala abafada, sem oxigénio, viciada pelas angústias mofentas do ego, que pretende passar uma falsa imagem de si para ser visto como importante. Abra as janelas do seu ser, seja transparente, deixe o ar entrar e purificar a sua mente. A verdade purifica, liberta a vergonha que se entranha nas paredes viscosas da mente, que aprisionam e condicionam, retirando-lhe a capacidade de viver espontaneamente livre como uma criança.
Valorizar a verdade implica necessariamente o entendimento profundo da enorme perda causada pela mentira, pela falsidade e, simultaneamente, também implica o entendimento igualmente profundo do irreversível dano causado pela mentira.
O que se ganha com a mentira? Ganha-se ser mentiroso, que, obviamente não é desejável nem louvável e incorre em demérito próprio, destruindo um dos alicerces mais bonitos das relações humanas – a confiança. A confiança é nutrida com a verdade. A desconfiança é nutrida com a mentira. Estas são as regras do jogo.
Quando alguém é o recipiente da mentira de outro – sendo o mentiroso mais fácil de apanhar do que um coxo – mais cedo ou mais tarde, a mentira virá ao de cima. Quando a mentira vem ao de cima, uma e outra vez, e rotulamos o outro de mentiroso por força das circunstâncias, então, nessa altura nefasta e negra, a confiança, que demorou anos para ser construída e na qual assentou toda uma vida de relacionamento abençoado, vai a baixo, fica despedaçada em mil cacos, como um cristal de estimação que cai num passeio de rua sujo do calcar das pessoas.
A verdadeira vítima da mentira é o mentiroso que perde a credibilidade, o valor, a dignidade, os amigos e os amores. O alvo da mentira – porque a mentira é uma seta que também corrói aqueles que levam com ela – fica triste, dececionado, irritado, incrédulo, desconfiado e lamenta muito. Pode até ficar traumatizado e ganhar pistantrofobia – a fobia ou o medo irracional de confiar novamente nas pessoas. Fica claríssimo para todos, mesmo para aqueles que ainda estão ensonados, que mentir gera sofrimento e que é, sem dúvida nenhuma, uma forma de hiṁsā, violência.
Ninguém quer ter um amigo mentiroso, ninguém quer ter um pai ou uma mãe mentirosa, ninguém quer ter um companheiro ou companheira mentirosa. Todos esperam a verdade, até quando perguntam as horas ou por orientação. Todos querem a verdade quando lhe colocam uma pergunta, assim nos diz o senso comum. Se deseja a verdade, ofereça a verdade.
O ganho conferido pela verdade é a integridade. A mente pensa a verdade, a boca diz a verdade, e as ações são a extensão dessa verdade. A pessoa fica inteira porque confia no seu potencial de vulnerabilidade e coragem. Aquele que mente obviamente esconde a sua fragilidade. A razão para isso pode ser o medo, a vergonha ou até segundas intenções. A razão é importante, claro, quando se tenta resolver problemas psicológicos e crescer emocionalmente, porém, mais importante é notar que a pessoa que mente fica dividida. Uma parte da pessoa quer mentir e mente; a outra parte, sabendo que mentir é errado, assiste passivamente, sendo incapaz de travar a mentira. De cada vez que se mente aumenta-se a divisão interna e a cada mentira mais e mais a pessoa fica dividida. Esta pessoa dividida acabará por deixar de confiar em si mesma, porque a força interna da verdade que assiste às mentiras tornou-se passiva e fraca.
Esta pessoa que deixa de confiar em si mesma, inevitavelmente assistirá à manifestação concreta da falta de confiança que gerou à sua volta – ninguém confiará mais nela, ninguém acreditará nela. Se a pessoa não confia em si mesma, e mais ninguém confia nela, que tipo de estrutura relacional existe?! Nenhuma. Existe uma “pseudo-estrutura” relacional, tão volátil e útil como uma cadeira feita fumo.
Por outro lado, a pessoa inteira, aquela que valoriza e implementa quotidianamente a verdade na sua vida, ganha a força da autoconfiança e a força da confiança que os outros depositam nela.
Diga a verdade. Escolha o melhor momento para o fazer. Se o momento não chegar, não minta e também não a expresse. Diga que ainda não está preparada para o fazer. Quando o momento chegar, seja doce nas palavras que escolher. Se a verdade não trouxer benefício, não fale se não for perguntado. Se for perguntado, responda somente se existir benefício para o ouvinte.
Deixo aqui um verso muito bonito da famosa Śrīmadbhagavadgītā para que possa contemplar no seu significado –
अनुद्वेगकरं वाक्यं सत्यं प्रियहितं च यत् ।
स्वाध्यायाभ्यसनं चैव वाङ्मयं तप उच्यते ॥ १७.१५ ॥
anudvegakaraṁ vākyaṁ satyaṁ priyahitaṁ ca yat |
svādhyāyābhyasanaṁ caiva vāṅmayaṁ tapa ucyate || 17.15 ||
V.17.15 – O discurso que não causa sofrimento (ao ouvinte), que é verdadeiro, agradável e benéfico, e a prática da recitação do seu próprio Veda, é, de facto, chamado de disciplina espiritual referente ao discurso.
Paulo Abreu Vieira
Maia, 05/05/2022
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coelhomj
Om _/\_